O acaso projetado: pensamentos de uma mente pandêmica

Artes e texto por Mariana Sirito

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Tudo o que me falta é o acaso.


O acaso que flana nas ruas como uma entidade, que muda o rumo e se entorta nas esquinas. O acaso mora na rua e é na rua que nos sujeitamos a encontrá-lo. 


A vida na rua, antes corrida, ditada pelo ritmo do trabalho, ao menos punha os corpos no jogo e no jogo tudo poderia acontecer: se o acaso te escolhesse você talvez encontrasse um amigo e acabasse no Ximeninho; ou avistasse uma paisagem que te ajudaria a descortinar uma questão: pega o aterro e dá conta daquele pedaço de texto que até aquele minuto era insolúvel e intragável.  


Viver a cidade, mesmo no tempo corrido do relógio, é estar aberto a alterações de rota, desvios de pensamento, e atalhos para novas possibilidades. Viver a rua é dar as mãos ao acaso, mesmo quando nos achamos no controle do tempo e da vida.

Mas se esse acaso mora na rua, quanto menos rua, menos acaso. 
Quanto menos acaso, mais o tempo mecânico: 


Bota máscara, tira máscara; álcool em gel. Cansei da meleca do álcool em gel; álcool 70% no borrifador. Olha o sapato. Não entra de sapato! tira a roupa da rua, bota a roupa de casa. Será que vão lembrar de mim? Será que eu sou eu de máscara? 1 mês, 2 meses, um ano e meio. um a.n.o e t.a.n.t.o.s m.e.s.e.s. 


O que me resta são memórias. Será que tem como arruar a memória? E o acaso, existe na memória?

Se me falta o acaso da rua, escolho o acaso da água: escrevo uma tese que a palavra parece não dar conta. Numa necessidade de me projetar ao acaso e deixar transbordar o que o texto não diz, comecei a desenhar as memórias que descrevo em minha tese sem pretensão nenhuma de chegar em algum lugar. Desenhei porque precisava e descobri que a água no papel tenta dar conta do que a palavra não dá. Assim, tenho pintado algumas memórias da infância e outras inventadas. Será que a água devolve no papel o que transborda de dentro? 


Compartilho aqui o jeito que encontrei pra arruar a vida, e a tese, e encontrar o acaso: aquarelas que timidamente me ajudam a contar minhas memórias com a rua, em especial as vividas na infância, na década de 1990, em que me encontrava com as folias de reis na região serrana do Rio de Janeiro, mais especificamente em Duas Barras e Bom Jardim.   


Desenhar a memória é um jeito de reviver um tempo espaço que não existe mais. No desenho da memória revivemos um anfiteatro demolido, o medo e o mistério de um palhaço da folia de reis, um hábito familiar de comer caminhões e inventamos histórias que gostaríamos de ter vivido ou que ainda estamos por viver. 


Iilustrar a tese é encontrar com a vida através da água. É dar chance ao acaso.


Sobre a autora:

Marina Sirito é designer, mestre em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design da Escola Superior de Desenho Industrial ESDI/UERJ e doutoranda no mesmo programa. Enquanto pesquisadora, integra o Laboratório de Design e Antropologia (LaDA/Esdi/Uerj).

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