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Viemos de caminhos já antigos, pesquisas, interesses e responsabilidades que são difíceis de demarcar temporalmente. Talvez 2019 seja um bom ano. Nós descobrimos ou fizemos ou experimentamos o dispositivo PANO. Em 2019 estávamos em roda, pintando, bordando, rabiscando, dobrando, rasgando, desfiando e abrindo pano. Estávamos em meio a rodas e cirandas, estávamos com gente e, acredite ou não, abraçando, beijando e até engasgando de rir. Não que aquele tempo estivesse melhor, já tava muito sofrido, mas algo se passava no nosso estar juntos desfiando o pano que nos fazia respirar. E assim estávamos respirando e enchendo o peito de ar para levar. Nós pesquisamos em meio e atentos aos afetos, entendendo que os afetos falam, contam histórias dos nossos corpos, das nossas raízes, das redes que somos nós. E essas histórias-redes, enredadas, tramadas nos panos, tecidas no plano comum dos encontros nos tiram da objetividade, do óbvio, do pronto a ser reproduzido e imposto e nos coloca no jogo, no brincar, no enredar e no pano. É a cidade e esse riso bobo de uma criança, a narrativa do chão, a fumaça nos pés de chinelo, a rua larga e os morros, o rio Paraíba do Sul e os ribeirões nossa pesquisa em subjetividade. Buscamos estar ali com as crianças ouvindo e falando em meio a brincadeiras o que pode ser também ocupar. Essas crianças que em meio às retiradas forçadas de terra continuam a brincar na praça, como quem se lembrava que o mundo não iria acabar. Eu hoje consigo me ouvir falando: “Respira um pouco, menina!”. Engraçado que são elas e eles que nos dão ar para continuar. Continuar arruando.
Em 2020 fomos para cidades diferentes e, de repente, viramos novos seres abastecidos a energia elétrica e wifi, nossas caras são telas de celular ou computador, entre 4 e 15,6 polegadas, acho. E aí, chega o desafio: o que fazemos? E lá se foi um ano de estudo e tentando arrumar ar para continuar a sustentar a rua. E nesse meio, respirando entre fios e paredes, novas pessoas foram chegando, e outras saindo, novas bolsas e projetos construindo. Fomos continuando, sustentando, respirando fracamente, às vezes, e, outras vezes, um pouco mais confortavelmente. Não foi gostoso até que passou, o que não quer dizer que não rimos. Em 2021 mais gente continuou chegando e ainda entre fios, telas, paredes, teclados, fotos e caixas virtuais continuamos a nos embrenhar em meio às crianças. Logo percebemos que aquelas crianças talvez fossem mais mães e pais... E lá nós fomos a brincar juntos, ouvindo e contando histórias. Nos aproximamos e fizemos juntos coisas muito bonitas: fotos, caixas, tintas, desenhos, poemas, áudios... Em nossas brincadeiras juntos fizemos mar, trovão, porta como táxi, brincamos na terra, no chão. É... tem muito chão ainda para continuar arruando.
Nosso ar foi pensar que depois que tudo passar a gente ia voltar a ter perna e pé, mão, boca e voz para cantar. Que a gente não ia ser mais tela e fio, e sim pele e roupa, com mais pano para gente fiar, desfiar, bordar, pintar, rasgar, costurar, dançar, refiar e respirar. Depois que tudo isso passar, vamos conhecer mais gente e continuar nosso trabalho de ouvir e ecoar, vamos até nos (re)conhecer, acredita? Depois que tudo isso passar vamos brincar com crianças e terra, mães e pais, avós e quem mais quiser. Vai ter ciranda, pano, roda e abraço. Óbvio, não vai ser imediato e sem cuidados. Porque, antes de tudo, para a gente fazer qualquer coisa como sonhar precisamos respirAR; e assim a gente ganha força para lutar fazendo rua. Respirar é continuar enfrentando estas políticas que matam e deixam morrer, sobrevivendo em meio a elas e apesar delas. E aí, pode esperar que vamos estar de pé, lutando por democracia, por chão, comida, saúde, humanidade e tanto mais…
Sustentar um trabalho com infâncias que passa pelo afeto não retira o rigor do pesquisar. Exige-nos mais. Trata-se de dizer e ouvir cidade, ouvir e dizer ocupar. Pesquisar subjetividade, não na sua completude, mas em seus fios e fragmentos. Falar de narratividade! Nós falamos, nosnós que falam de narratividade! Temos alguns nomes: Grupo de Desutilidades Urbanas, Oficina de Montagens, Laboratório Limiares Cidade e Subjetividade. Em meio a esses diversos nomes, um de nossos projetos se chama Histórias que não se ouvem. E nele é este nosso interesse: narrar tropegamente aquilo que foi esquecido ou simplesmente aquilo não convoca a atenção de planos e cidades por demais úteis. Nesse sentido nos colocamos enquanto testemunhas, como propomos junto a Jeanne Marie Gagnebin. Ou enquanto território de passagem: passagem dessas histórias trôpegas. Posição em que o pesquisador pode emergir como território, sulcado, fiado, inventado Com o outro. Posição em que também o pesquisador se coloca: corpo que se oferece para acontecer pesquisa, corpo como “suporte” para o outro falar, narrar.
Acho que vale ainda ressaltar que nada desse “nós” é mágico, sustentado por forças sobre-humanas, especiais ou caridosas. Somos mais um grupo em meio a tantos que sustentam e são sustentados por laços e redes com esperança. Esperança não como ato de esperar, mas como ações e lutas a praticar. Somos inspirados por Paulo Freire, a apostar no esperançar do brincar, no estar Com as infâncias acreditando que é possível tecermos lutas por melhores dias nos respiros brincantes que nos são possíveis hoje. Temos ao nosso lado Conceição Evaristo e seus becos, Renato Noguera e sua infancialização, Walter Benjamin e sua concepção de história e narratividade, Marcia Moraes com o pesquisar Com. Temos outros ainda que, não por não valerem citação que são ocultados, mas porque a cada dia mais encontramos frestas e pessoas que estão por aí arruando e nos acompanhando, mesmo sem conhecer, a caminhar.
Quando tudo isso passar, esperamos continuar arrumando ar e compondo redes e afetos. E, em meio a cidades que não se ouvem, esperamos que nem tudo passe, e que possamos continuar a nos fazer caixas de ressonâncias dessas histórias que ficaram puídas, rompidas, emendadas e queridas.
De Grupo de Pesquisa em Desutilidades Urbanas
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 9.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
Grupo de Pesquisa em Desutilidades Urbanas(GPDU) é um grupo de pesquisa e extensão da UFF que busca desde 2013 se debruçar sobre políticas de subjetivação, dando atenção especial às narratividades urbanas como modos de dizer cidade.