Se 2013 era o ano em que,
por toda parte do Rio de Janeiro ou do Brasil,
um suposto gigante teria supostamente acordado
e se 2016 era,
nas palavras colocadas pela prefeitura do Rio
em cartazes, banners e adesivos que invadiram boa parte da cidade,
“O ano que veio para ficar”
2017 talvez seria o ano em que nada acabou,
ou se pá o ano em que tudo acabou em pizza
em que toda uma massa que tinha se levantado, esticado e esquentado pelas ruas
de repente se descobriu coberta pelo molho da mesmice
e o queijo derretido das derrotas de outrora
e das que ainda estariam por vir
(Peço desculpas pela metáfora tosca, que me parece inseparável da minha gringuice,
dos inevitáveis tropeços linguística-ideológicas que partem de meu sotaque estadunidense-hipster.
Mesmo assim, meus inevitáveis erros de gramática e minhas pretensões ao poetismo não me parecem mais equivocados ou prepotentes que as
continuidades político-estéticas
que tenho para relatar.
28 de abril de 2017
Centro e Glória, Rio de Janeiro
Ficou muito claro, bem antes da concentração do grande ato desse dia de greve geral contra o sucateamento da previdência pública pelo governo Temer, que a Polícia Militar tinha ordens de não deixar ninguém avançar. De manhã cedo, manifestações relativamente pequenas bloquearam a Avenida Brasil, o Aeroporto Santos Dumont e, no outro lado da Baía de Guanabara, o terminal das barcas de Niterói. Enquanto isso, relatos e fotos sobre o sucesso desses atos foram se espalhando pelas mídias ditas sociais, além de avisos do rápido aumento da presença da Tropa de Choque.
Não acabou!
Tem que acabar!
Eu quero o fim da Polícia Militar!
Pelo que entendi, a porradaria começou de fato por volta das 15h30min, quando uma primeira leva de manifestantes no centro do Rio começou a andar da ALERJ para a Cinelândia, onde uma grande concentração tinha sido marcada para às 17h. Cheguei às 16h55min, já sabendo de vários tiros, porradas e bombas que estavam rolando por ali. Enquanto atravessava a Rua Evaristo da Vega:
(onde fica sediado o QG da PM do RJ)
o cheiro afinado dos restinhos de gás lacrimogêneo já estava forte.
Fora Temer!
Fora Temer!
Segui a Rua das Marrecas para chegar na Cinelândia pela Rua do Passeio, o que acabou sendo uma boa estratégia, já que, praticamente às 17h em ponto, a Tropa de Choque começou a jogar uma caralhada de bombas
(recorro à essa descrição específica por ela encapsular uma masculinidade especificamente tóxica)
pelo outro lado da Cinelândia, perto do Theatro Municipal. O fluxo do ato se reverteu em direção à Lapa, Glória, o Aterro do Flamengo e o Consulado da Trumplândia. Passei pelo menos uns 10 minutos indo e vindo pelos meios-fios entre o Aterro, o Passeio Público e a Praça Paris, tentando me distanciar das correrias e atritos que vinham por trás, e tentando entender os direcionamentos gritados:
quase sempre por homens, de diversas idades e raças, que pareciam se imaginar líderes e queriam levar qualquer coisa adiante.
Não corre!
Fecha o aterro!
Vamos pro Santos Dumont!
Consulado americano!
Entre os gritadores, vi o Godô, figura lendária e meio perenemente presente em qualquer teatro de rua ou manifestação política do Rio. A imagem que ficou comigo foi dele gritando
É Céu na Terra, porra!
Mas, por mais que eu queira, não posso jurar com 100% de certeza que isso teria acontecido de fato; talvez tenha sido uma invenção minha, uma projeção, uma esperança qualquer.
Entendi aquela colocação, imaginada ou não, como uma referência ao lendário bloco carnavalesco de Santa Teresa. Mas pode ser também que Godô estivesse apontando algo como um paraíso efêmero em meio ao gás e balas de borracha, algo de esperançoso na determinação de dezenas de milhares de pessoas que enfrentavam toda aquela repressão para ocupar o centro da cidade. Também pode ser apenas uma ironia, ou então, simplesmente que Godô estivesse bêbado (ou, como ele prefere, “em desvario”).
Se, de fato, era para ter alguma esperança, acho que ela viria em termos do nosso tamanho; visto que toda a determinação da polícia em não deixar o ato acontecer, todas as bombas de gás, as torrentes de spray de pimenta e as balas de borracha não dispersaram o ato de vez, apenas fizeram com que mudássemos de direção.
Não acabou!
Tem que acabar!
Depois do meu pega-pega pessoal ao longo da Rua Teixeira de Freitas e da Avenida Beira Mar, fui me aproximando ao Consulado dos Estados Unidos, mas muitas salvas de balas de borracha começaram a pipocar por vários lados. Voltei, semi-correndo, para o entorno lamacento da Praça Paris, que parecia estar livre da Tropa de Choque, pelo menos até aquele momento.
Quinze minutos depois, encontrei com amigas na Rua da Glória, na esquina com a Cândido Mendes, onde outrxs 300 ou 400 manifestantes recém-escapadxs
(na sua maioria brancxs-classe-média-alta-intelectuais-artísticxs-gentrificadorxs-em-potencial)
conversavam ao redor de uma banca de jornal, enquanto outrxs se reuniam pra tomar chope em um bar na calçada. Mas nem deu tempo da gente pegar uma Heineken na banca antes que bombas de gás, vindas da direção da Lapa, começaram a explodir a alguns poucos metros do nosso lado. Metemos pé, subindo a Cândido Mendes, tentando lembrar se, em algum momento desde as “jornadas” de 2013, a Tropa de Choque tinha subido Santa Teresa.
Mantivemos uma distância confortável, dando algumas descidas curtas e rápidas para conferir até que ponto a confusão havia chegado. Enquanto isso, nossos celulares continuaram vibrando com relatos de mais balas de borracha pelo Aterro, fotos dos ônibus recém-queimados na Lapa, avisos de gás lacrimogêneo no Flamengo. Em algum momento desses, sem nenhum de nós dar qualquer declaração oficial, ficou claro que o ato já havia acabado para a gente, e descemos alguns poucos metros até o bar mais próximo.
18 de maio de 2017
Avenida Rio Branco, Centro, Rio de Janeiro
Porra, Temer.
Nem três semanas depois da greve geral, as ruas estavam bombando novamente, em todos os sentidos. Na noite anterior, dia 17 de maio, todo mundo ficou sabendo das denúncias de Joesley Batista, que implicavam Michel Temer e Aécio Neves bem direta e conscientemente em mega-esquemas de corrupção, mostrando pela enésima vez que The Brazilian Dream of the American Way of Life, por mais polido e estreito que se esforce a ser em suas articulações, é carregado de imundice; aliás, é carregado por imundice.
Defino The Brazilian Dream of the American Way of Life assim:
Se trata de um sonho reformista de um desenvolvimentismo em que a ORDEM gera o PROGRESSO
(e vice versa)
em letras maiúsculas e traços inequivocamente verde-e-amarelos;
um sonho em que governantes e empresárixs se interligam para todo mundo se apoiar e sair ganhando
(e ganhando bem);
um sonho em que a escala e a concretude de certas conquistas se destacam na tentativa de fazer sumir a escala dos problemas sociais mais dispersados por aí.
Em algumas poucas horas depois das revelações, não tão reveladoras, de que o presidente-vampiro Michel Miguelo Elias Temer Lulia teria utilizado a sua “natural discrição” (TEMER apud GloboNews) para reverter funções políticas em enriquecimento pessoal, um ato já estava marcado para o próximo dia, quinta-feira, 18 de maio, às 17h na Candelária, e milhares de nós já confirmávamos presença em pelo menos uma das dezenas de eventos que pipocavam nas mídias que se dizem sociais.
Já de manhã, todo mundo ficou sabendo que Temer iria fazer um pronunciamento por volta das 16h. E todo mundo parecia ver, quase que instantaneamente, uma postagem no blog de Ricardo Noblat que foi ao ar às 15h06min:
O presidente Michel Temer está pronto para anunciar sua renúncia ao cargo e deverá fazê-lo ainda hoje, no início da noite. Já conversou a respeito com alguns ministros de Estado e, pessoalmente, acompanha a redação do pronunciamento que informará o país a respeito.
(NOBLAT, in Blog do Noblat – O GLOBO, 18 de maio de 2017)
Aí os memes começaram a rolar;
alguns eram muito bons, mas basicamente todos eram irresistíveis, porque é basicamente assim que os memes sempre são.
Foi um daqueles momentos de efervescência virtual e inescapável, de grandes reviravoltas de política,
ou de séries de televisão, esportes ou fofocas
que geral acaba acompanhando em alguma medida, em que qualquer comentário ganha dezenas de curtidas e respostas quase instantâneas, em que todxs sabem que estão ligadxs na mesma coisa, só que de longe. Ao longo de 2017, fiquei sentido que os atos e manifestações e protestos também estavam ficando cada vez mais assim, mesmo para quem estava na rua, que nem a nossa conexão física e consciente poderia nos juntar, nos tirar dos nossos cantinhos e bolinhas.
Não vou lembrar quem, em minha timeline, interrompeu o fluxo de memes para postar o streaming do pronunciamento do Temer, alguns minutos depois das 16h. Lembro apenas que apareceu de repente e que lá estava ele, falando bem rápido
Não preciso de cargo público e nem de foro especial. Nada tenho a esconder. Sempre honrei meu nome, na universidade, na vida pública, na vida profissional, nos meus escritos, nos meus trabalhos… Não renunciarei. Repito. Não renunciarei. Sei o que fiz e sei da correção dos meus atos. (TEMER apud G1 2017, 18/5/2017)
Chegando na Cinelândia às 18h-e-tanto, esbarrei com um pequeno fluxo de gente saindo do ato, além de uma longa ala de policiais da Tropa de Choque semi-escondida nas sombras da Biblioteca Nacional. Pelo visto, o ato tinha acabado de andar; quando me juntei à aglomeração, ainda estava perto da esquina com a Presidente Vargas.
Fora Temer!
Fora Temer!
Fiquei meio que pulando por entre grupos
correndo para frente para não andar perto da CUT, que aparentemente tinha contratado seguranças para bater em integrantes do Black Bloc em outros atos recentes,
e depois se esquivando por entre os muitos corpos jovens que, de repente, começaram a gritar
UJS! UJS!
(Sempre que ouço ou vejo essa sigla, penso imediatamente na constante, dedicada e explícita defesa à Copa do Mundo e, implicitamente, The Brazilian Dream of the American Way of Life, que distinguiu o grupo em 2014).
até que me achei entre manifestantes que pareciam ser mais do meu naipe não-partidário-pseudo-anarco
Não acabou!
Tem que acabar!
Ainda falta o Rafael pra libertar!
Naquela altura, já tinham passado quase quatro anos desde a segunda prisão do Rafael Braga, um jovem catador de lixo negro. Depois de passar anos preso pelo porte, durante a grande manifestação do dia 20 de junho de 2013, de desinfetante, categorizado pela polícia militar como um possível explosivo, foi pego novamente em janeiro de 2016, supostamente “traficando” 0,6 gramas de maconha e 9 gramas de cocaína, para qual era condenado a mais de onze anos de prisão.
Chegando de volta na Cinelândia, tive a impressão de que o ato estava crescendo, mas deve ter sido à concentração que o espaço proporciona e enfatiza: o acúmulo de pessoas, que se distribuía em vários quarteirões até então, agora estava se juntando na parte da frente da praça, ocupando
como sempre
a escadaria da Câmara de Vereadorxs, cercando um carro de som de algum sindicato ou partido político ou seja o que for. Eu já estava com sono, pensando em voltar pra casa, quando vi várias ondas de encapuzadxs do Black Bloc começaram a se juntar, andando em direção à Rio Branco. As explosões de bombas de gás, rojões, bombas de efeito moral e seja mais o que for começaram uns 10 segundos depois.
1 de agosto de 2017
Rua Carlos de Carvalho, Centro, Rio de Janeiro
As Forças Armadas tomaram a Avenida Brasil, a Linha Vermelha, a Avenida Atlântica, o Largo do Machado, a Linha Amarela, o Boulevard Olímpico e outros tantos pontos marcantes da cidade, sem nenhum prazo oficialmente previsto ou estipulado para a sua saída. Ouvi dizer, inclusive, que estavam sendo aplaudidas por moradorxs em várias partes da cidade.
Não cheguei a ver ou ouvir esses aplausos, a não ser representados por emojis na capa do Meia Hora.
Enquanto isso, as manchetes dos jornais cariocas continuavam a tentar se superar cada dia com notícias mais sangrentas e trágicas.
No Rio, balas
perdidas fazem
3 vítimas por dia
(O GLOBO, 6 de julho de 2017)
Alunos do
Rio terão
aula para
se proteger
de tiroteio
(EXTRA, 12 de julho de 2017)
MORRE BEBÊ
BALEADO NA
BARRIGA DA MÃE
(MEIA HORA, 31 de julho de 2017)
Ou seja: a violência que tanto marca a cidade acaba sendo posicionada como a principal marca da cidade, pelo menos para quem mora aqui.
Forças armadas já atuam
no Rio para ‘golpear crime’
(O GLOBO, 29 de julho de 2017)
Enquanto isso, o Bispo Marcelo Crivella, no papel de prefeito da cidade bastante herética de São Sebastião, foi universalizando seu reino sobre a cidade, tirando tudo que podia das escolas de samba, das escolas da rede pública, dos hospitais, dos terreiros. Isso não só em termos de dinheiro; o controle interessa até mais. No final de maio, o Bispo soltou um decreto exigindo que qualquer
atividade econômica, cultural, esportiva, recreativa, musical, artística, expositiva, cívica, comemorativa, social, religiosa ou política, com fins lucrativos ou não, que gere:
I – concentração de público, em áreas abertas ou fechadas, particulares ou não (CRIVELLA, 26 de maio de 2017)
passasse a ser registrada na prefeitura antes de acontecer, que fosse abençoadamente autorizada por seu anel de sinete.
Sem me adentrar nos Sonhos das Igrejas Universais, convém dizer que, mesmo que esses se distingam de The Brazilian Dream of the American Way of Life em alguns fatores fundamentais (e fundamentalistas), a escala de seus contornos é bastante parecida, assim como também é sua aplicação de coturnos locais para se realizarem.
Enquanto isso, o Maracanã continuava dormindo em um silêncio quase total desde os últimos meses de 2016, o Ano Que Veio Para Ficar. A propriedade antigamente pública, agora administrada pela Odebrecht, foi virando um estádio-fantasma porque ninguém queria pagar seu aluguel ou se responsabilizar pela milionária conta da Light.
Enquanto isso,
Ou seja: ficava cada vez mais claro que o famoso Pato só seria pago pelas mesmas pessoas, pelos mesmos processos e pelo mesmo sofrimento de sempre.
Nada deve parecer impossível de mudar
Nada deve parecer impossível de privatizar
Nada deve parecer impossível de piorar
Não é difícil prever que The Brazilian Dream of the American Way of Life ainda continuará pairando sobre o Rio de Janeiro durante muito tempo, e que as medidas tomadas para concretizar qualquer parte dele continuarão a se destacar por sua brutalidade.
Não acabou!
Tem que acabar!
Eu quero o fim da Polícia Militar, como tantxs outrxs também querem. Mesmo sabendo o quanto está enraizada enquanto instituição, e mesmo sabendo que, se um dia passasse a ser reformada ou desfeita, iria persistir em muitos sonhos, e que toda a poeira que ela tem deixado ao longo de décadas e séculos não poderia ser dispersa fácilmente, e muito menos, rapidamente. Mesmo sabendo que, na hora que chegasse a ser desfeita, não seriam poucas as pessoas que sonhariam cada vez mais arduamente com a sua volta.
Sobre o autor:
Raphi Soifer é performer, pesquisador e bagunceiro cujo trabalho foca nas relações entre memória, território e corporeidade, e nas estéticas de poder e protesto. É doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, mestre em Ciências da Arte pela UFF e bacharel em Artes Cênicas e Antropologia pela Universidade de Yale.